Trabalhar é uma fatalidade, ou É por R$ 0,20 e sempre será

Lucas Pretti
3 min readJul 28, 2018

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Amauri trabalha em um supermercado no centro de SP. Ele ajuda a levar as compras a pé nas casas das pessoas (vale só para moradores dos arredores, como eu e minha companheira), e volta com o carrinho vazio para o mercado. Vaivolta, vaivolta.

Conversando com ele no caminho, descobre-se que mora em São Miguel Paulista, tem 24 anos, uma esposa e uma filha de 5. A esposa também trabalha em um supermercado. Amauri chega ao centro todos os dias de ônibus, em viagens de 2 horas para ir ou voltar. Levaria metade desse tempo se viesse de metrô — mas o vale-transporte do supermercado não paga a integração, que daria R$ 1,65 por dia a mais, ou R$ 36,30 no mês.

Ele mesmo não inteira a passagem porque ganha um salário-mínimo, e tem uma família, afinal.

Deixa as compras em casa, simpático, sorridente, e diz que gosta da vida que leva, principalmente porque conseguiu o melhor turno — entra no trabalho ao meio-dia e larga às 20h30, foge do rush. Contando mais as 4 horas de transporte, fica 12,5 horas longe de casa todo dia. Plantão de fim de semana? Um sim, um não.

“Mas é isso aí, tem que trabalhar.”
Respondo: “É… Tem que trabalhar.”

82% de todas as pessoas que vivem neste país são Amauris. Sim, a luta é por R$ 0,20. Isso é menos um julgamento de valor sobre qual drama é maior ou qual reivindicação mais legítima, e mais uma reflexão: estamos por quem?

No livro It’s the Middle Class, Stupid! (Plume, 2013, ainda sem tradução para o português), James Carville e Stan Greenberg dizem que o maior problema dos Estados Unidos é que a classe média não se enxerga como classe trabalhadora — e por lá eles são 98%. Trabalham, se movimentam pela cidade principalmente para ir ao trabalho, e consomem itens relacionados a isso (ou que deem “prazer” — diversão, remédios para dormir, netflix etc — ou que suportem a condição de trabalhadores — babás, escolas integrais etc). Mas, na pesquisa, dizem: “Não somos trabalhadores”.

Eu sou trabalhador. Não sou herdeiro. Ainda não consegui construir outra opção. Por isso vendo as horas do meu dia para alguém que sempre tentará não pagar o R$ 1,65 da integração. E tento dar às horas algum sentido maior, como escrever e espalhar este e outros textos com ideias necessárias.

No livro Elogio à Preguiça (Edições SESC SP, 2012), obrigatório, o artigo de Francis Wolff compara filosoficamente o trabalho na sociedade contemporânea com a morte. Nascemos com a certeza melancólica de que morreremos — o mesmo vale para o trabalho. A diferença é que não somos forçados a gostar da morte, mas do trabalho sim.

Vocês me dirão: “Gostaríamos muito de poder não trabalhar! Mas é impossível. É preciso trabalhar, infelizmente!”. Pode ser. Mas o que entendemos por “é preciso trabalhar?”. Não é por estarmos fadados a fazer alguma coisa que isso é bom! Por exemplo: é necessário morrer, é uma exigência da vida. Mas não somos obrigados a gostar disso! Ninguém faz da morte um valor em si. A morte é uma simples limitação da condição humana. Ela não é mais, talvez, do que uma lamentável fatalidade. Nunca um valor. O mesmo ocorre com o trabalho. Pode ser que seja necessário trabalhar, mas por que temos que, além disso, gostar de trabalhar? Por que devemos achar que isso é bom? Por que fazer a apologia do trabalho? E por que reprovar aqueles que se recusam a aceitar essa fatalidade? Por que devemos condenar a preguiça?

Não caibo em mim de alegria pela vitória dos garis do Rio de Janeiro!

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Lucas Pretti

Brazilian journalist, artist and researcher working in the intersections of digital culture, activism and contemporary arts. http://pretti-et.al