O que os mil e um manifestos espalhados pela rede dizem sobre a democracia no Brasil

Lucas Pretti
4 min readJul 28, 2018

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Lembro de ter feito um tweet na manhã em que Lula foi conduzido coercitivamente para dar depoimento à Polícia Federal, e horas depois faria o discurso histórico que daria início a toda a avalanche das últimas semanas. Estava em Itaquera e não ouvi panelas, mesmo com as TVs comemorando a notícia como “prisão do Lula” e as timelines se incendiando. O tweet: “Desligar o Facebook. Hoje é o dia perfeito para inspirar todos os outros dias”.

Pessoas empoderadas pedindo e construindo mudanças todos os dias é no que conceitualmente acredito e estimulo, na coordenação da Change.org, na minha prática artística, na academia. Mas o que vem acontecendo no Brasil levantou nuances inéditas sobre mobilização e luta em contexto digital que tendem ao esgotamento. Minha geração nunca tinha visto uma ameaça conservadora tão grande (não é só no Brasil, vide Trump, Estado Islâmico, todas as questões imigratórias), que, explodida nas redes, torna tudo monotemático, melancólico e estafante.

Por isso fiz a pergunta alguns dias depois: “Como organizar a resistência?” (termo aliás inspirado na capa deste mês do Le Monde Diplomatique Brasil). As respostas não são conclusivas, apontam caminhos, fazem provocação, são ora mais ativas, ora mais quietas e reflexivas. Mas a conclusão que apontam é animadora e serve de inspiração para este texto: resistir é um verbo multilateral.

Perco a conta de quantos manifestos, cartas e abaixo-assinados vi circulando nas últimas duas semanas. São pessoas de diversas origens com várias intenções tomando posição e se esforçando para que mais pessoas apoiem este posicionamento. Sublinho alguns:

O que há de interessante nos casos acima é que cada grupo utilizou um meio digital diferente: abaixo-assinado na Change.org, site próprio, documento do Google, texto no Medium, petição na Avaaz. Em 2013, o Movimento Passe Livre organizou toda a mobilização via eventos no Facebook. Em 2011, os árabes derrubaram a ditadura também usando o Twitter sistematicamente. E, óbvio, nada disso substituiu a rua; em tempos cíbridos, pelo contrário, uma coisa alimenta a outra.

A organização da resistência é diversa — ainda bem! O contrário disso é praxe do totalitarismo e das ideias fixas alienantes: todos de uniforme, todos com o mesmo corte de cabelo, todos brancos, todos héteros, todos vestidos iguais, todos ricos. É alentador sentir que os vários grupos que formam o povo brasileiro vêm se organizando cada um a sua maneira, mobilizando os seus, engrossando um coro a partir de falas individuais e representativas.

Multidões urbanas conectadas são a novidade sociológica da contemporaneidade. O filósofo italiano Antonio Negri descreve essas novas formas de poder a partir da noção de commons (bem comum), cara ao digital: a multidão “não é o povo nem as massas, parecem nômades em um percurso agregador de pessoas autônomas”. Mesma linha de pensamento segue o sociólogo norte-americano David Harvey. As “cidades rebeldes” emergem em momentos de unificação de lutas, em que as pautas convergem, como no Occupy Wall Street novaiorquino, no 5M madrilenho, nas Jornadas de Junho de 2013, e talvez também agora pela democracia. O filósofo Homero Santiago escreve que a resposta deve ser prática: “Só às lutas caberá dizer quem é a multidão e como poderá ela exercer o seu poder e, organizadamente, constituir um novo real que faça jus aos seus anseios de democracia, liberdade, felicidade: o comum.”

Dias atrás, numa conversa com uma amiga militante, ela me dizia que nunca viu as mulheres do feminismo negro tão mobilizadas, mas que “cada uma cria um manifesto ou documento num site diferente”.

Como diretor da plataforma no Brasil, a resposta automática seria tentar convencê-las de que a Change.org é a maior, mais usada e tem os melhores recursos (e tem mesmo), gera mais visibilidade/engajamento/repercussão na mídia e possibilita vitórias reais (já são quase 300 abaixo-assinados atendidos pelo país afora). Fora que há uma diferença importante: a Change.org está desenhada para uma pessoa comum fazer um pedido concreto a pessoas que possam resolver a questão — não exatamente para petições-protesto ou manifestos como os acima.

Mas a resposta é outra. Ainda bem que a resistência é diversa. É sinal de que a democracia ainda está. Quando elas (e qualquer outra pessoa) precisarem da Change.org para se organizar, estaremos aqui.

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Lucas Pretti

Brazilian journalist, artist and researcher working in the intersections of digital culture, activism and contemporary arts. http://pretti-et.al