O comum nas artes: elementos para novas poéticas

Lucas Pretti
23 min readJun 5, 2018

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Este artigo propõe cinco tópicos teóricos para categorização de projetos de artes que têm nos bens comuns (“commons”) seu principal campo de pertencimento. Parto de um histórico de obras e ações artísticas realizadas na cidade de São Paulo a partir da segunda metade do século 20, cujo lastro ainda pertencia ao universo da “arte política”, para me dedicar mais especificamente à atuação de coletivos artísticos e ativistas nas décadas de 2000 e 2010. Sigo com a apresentação de três modelos de casos escolhidos para estudo — BaixoCentro (2012), Pimp My Carroça (2012) e Piscina no Minhocão (2014) –, e então faço a primeira descrição do conceito obtido como resultado da pesquisa de mestrado: as poéticas do comum, cujos preceitos se aproximam dos que fundam o pensamento da cultura livre.

PALAVRAS-CHAVE

arte coletiva; artivismo; commons; cultura livre; poéticas do comum.

ABSTRACT

This article proposes five theoretical topics for the categorization of art projects having the “commons” as their main field of belonging. Starting from the review of artistic works and actions runned in the city of Sao Paulo, Brazil, from the second half of the 20th century onwards, still belonged to the universe of “political art”, I dedicate attention to artistic and activist collectives from the decades of 2000 and 2010. I continue with the presentation of three case models — BaixoCentro (2012), Pimp My Carroça (2012) and Piscina no Minhocão (2014) –, and then I make the first description of the concept obtained as a result of my master’s research: the poetics of the commons, whose precepts are similar to the ones found under the free culture thought.

KEYWORDS / PALAVRAS CLAVE / MOTS-CLÉS

collective art; artivism; commons; free culture; poetics of the commons.

A cidade de São Paulo é a metrópole mais populosa e constrastada da América Latina e, naturalmente, o cenário mais importante das artes no Brasil. Para além dos monumentos escultóricos construídos durante os séculos 19 e 20 em espaços públicos, que contam a história da cidade e proporcionam experiência de fruição visual aos passantes, vê-se desde os anos 1970, seguindo a tendências das vanguardas artísticas, as ruas da cidade serem ocupadas por happenings e performances de artistas como Artur Barrio, Nelson Lernier, Cláudio Tozzi, Maria Bonomi e grupos como Viajou sem Passaporte, Manga Rosa e 3Nós3 (Arantes, 2010). Após a virada do século, multiplicam-se as iniciativas de caráter interventivo. Nos anos 2000, coletivos de arte assumem o protagonismo com ações ativistas e conceituais (Mesquita, 2008) de coletivos como Contra Filé, BijaRi, Frente 3 de Fevereiro, EIA, A Revolução Não Será Televisionada, Ocupacidade, C.o.b.a.i.a, entre outros, que cavam brechas na metrópole com dispositivos relacionais poéticos e políticos: uma kombi de papelão dirigida por quem quiser entrar, plantas levadas para passear em carrinhos de feira, um coral de Natal que entoa uma letra satírica, etc. Na década de 2010 vê-se a evolução dessa natureza de ações no abandono da ação em si para a buscar do formato plataforma; mais que um dispositivo relacional, abrem-se campos e estruturas em que outros artistas ou qualquer pessoa são convidados a intervir. É o que vem ocorrendo no BaixoCentro, no Buraco da Minhoca, no Barulho.org, no Ônibus Hacker, no Laboratório da Cidade, na Voodoohop, no O.bra e em tantas outras iniciativas.

O objetivo deste artigo é apresentar o trabalho de artistas e ativistas paulistanos nas interrelações entre arte e política, primeira aproximação para o conceito de commons (bens comum) vinculados às artes, fruto da revolução digital no final do século 20. Por isso, opto pela descrição cronológica e pela busca da contribuição estética e política de cada década sem se ater a detalhes tão específicos. Como pano de fundo mais geral, a metrópole brasileira viveu nas últimas décadas os movimentos migratórios dos anos 70 e 80, o processo de abandono do centro para os condomínios nos anos 90 (e a ascensão da cultura da periferia), o processo de gentrificação dos anos 2000 (e o fortalecimento da luta pela moradia), a retomada das ruas nos anos 2010 (e o empoderamento cidadão através da internet e de manifestações de rua). Vejamos como os projetos de arte no espaço-rua se manifestam em cada período.

O primeiro happening paulistano, ou pelo menos a primeira ação que a historiografia da arte tardiamente reconhece dessa maneira, é o projeto de Flávio de Carvalho, Experiências (1931). Apesar de ter sido realizado 30 anos antes e num contexto bem diferente da agitação cultural dos anos 1960, o artista já propõe técnicas “deambulatórias” e “errâncias urbanas” como manifestação artística em sintonia com as vanguardas modernistas do século 20 (Arantes in Bambozzi, Bastos e Minelli, 2010:81). Flávio de Carvalho veste-se com saia e blusa listrada e coloca um tipo de boné para intervir numa procissão de Corpus Christi, andando no contrafluxo. O estranhamento das centenas de fiéis termina com o artista precisando fugir, necessitando inclusive de ajuda policial para protegê-lo numa leiteria.

Saltando para os anos 1960, a produção de Artur Barrio é exemplar sobre como artistas que tinham produções originalmente tradicionais nas artes, como é o caso dele na pintura, passam a buscar manifestações nos espaços públicos com conteúdo político. Sua série Situação (1969), cuja manifestação de maior repercussão se dá em Belo Horizonte mas também com realizações em São Paulo e Rio de Janeiro, distribui por diversos pontos das cidades um amontoado sem forma de materiais orgânicos e inorgânicos, como cimento, borracha, carne e tecidos. Com o tempo, o cheiro daquele descarte e a mancha que deixa nas calçadas incomoda o poder público e chama atenção dos passantes. As Situações seriam interpretadas dentro da contracultura como uma provocação ideológica à ditadura militar e um manifesto contra o sistema da arte (Arantes in Bambozzi, Bastos e Minelli, 2010:81).

Nelson Leirner é outro que, nos anos 1970, explora o espaço da metrópole com ações que já podem ser consideradas de um artista-ativista. Em Outdoors (1968), distribui por São Paulo reclames com frases de efeito provocando o moralismo do regime militar, “Aprenda a colorir gozando a cor”. Já atuando como o grupo Rex, em Exposição Não Exposição (1967), eles convocam o público e a crítica para um evento em que não há qualquer obra exposta, um happening que visa atingir o mercado da arte e encara a própria aglomeração de pessoas como a obra em si.

Nesse sentido, Leirner se assemelha conceitualmente a duas obras do mesmo período. Uma, Corpo coletivo (1970), de Lygia Clark, em que a artista cria uma vestimenta para vários corpos, conectada por fios em partes não-óbvias do figurino (os cotovelos de um ligados aos joelhos de outro, por exemplo). Os espectadores-interatores vestem e criam naturalmente uma forma escultórica viva, uma obra de arte fluida e processual. Outra, Divisor (1968), de Lygia Pape, uma das “esculturas sociais” da artista, uma espécie de manto de vários metros quadrados, com buracos para cada pessoa colocar sua cabeça, criando uma alegoria que ocupa o espaço público a partir dos movimentos da multidão interatora.

Claudio Tozzi e Maria Bonomi são expressões setentistas de arte urbana paulistana. Suas criações de esculturas e murais de grandes dimensões no espaço público são marcantes. A Colcha de Retalhos (1979) de Tozzi é uma das intervenções na Estação da Sé, ao mesmo tempo em que é contratado pela iniciativa privada para estetizar diversos novos edifícios na capital paulista. O Painel do Sesc Vila Mariana (1980) e o mural Zebra (1972), no topo de um prédio da avenida Ipiranga, são duas outras obras bastante influentes, tendo a última gerado bastante discussão quando foi retirada pela administração do condomínio em 2014, que acusou os ocupantes, integrantes de movimentos sociais de luta pela moradia, de a terem danificado.

Mesmo não sendo brasileiro, vale também registrar a obra O Branco Invade a Cidade (1973), do argelino Fred Forest. No contexto da Bienal de São Paulo, ele organiza uma passeata de dez pessoas segurando cartazes em branco, que andam entre o Largo do Arouche e a Praça da Sé. No caminho, centenas de pessoas se juntam organicamente à manifestação fictícia e bloqueiam o trânsito por várias horas. Forest é preso pelo Dops e precisa da ajuda da Embaixada da França para ser liberado.

A esta cena em que já se esboça o coletivismo — mas que ainda depende de iniciativas individuais e da “assinatura” de um artista –, se seguem os anos 1980, cuja principal contribuição é:

o reconhecimento de que a cidade é grande demais, complexa demais, confusa demais, agressiva demais para que um urbanista, um arquiteto, um único artista possa desenhá-la, possa impor a ela seus desígnios de leitura e articulação. (BRISSAC-PEIXOTO in MIRANDA, 1998:118)

De fato, o sentimento de incapacidade diante do todo é o campo de onde emergem os primeiros coletivos de artistas interventores, cuja atuação é primordialmente de arte pública, no sentido de promover ações hoje entendidas como intervenção urbana. O grupo 3Nós3, por exemplo, usa o conceito de “interversão”, no sentido de que as intervenções trabalhar pela “inversão da percepção da paisagem” (Arantes in Bambozzi, Bastos e Minelli, 2010:81). Em Ensacamento (1979), eles perambulam pelo Ipiranga, pelo Ibirapuera, pelo Centro cobrindo a cabeça de todas as esculturas instaladas nos espaços públicos com saco de lixo e fita crepe, inclusive o Monumento às Bandeiras. Priscila Arantes sublinha que, nesta década, já há certa preocupação cíbrida, tomando o espaço virtual da mídia como um campo em que as obras buscam também atuar:

A intervenção no espaço urbano só tinha sentido se pudesse, de alguma forma, reverberar no espaço dos meios de comunicação, construindo uma espécie de rede entre o espaço urbano e o da mídia, e ampliando em escala a experimentação desenvolvida no espaço físico. (ARANTES in BAMBOZZI, BASTOS e MINELLI, 2010: 82)

Os coletivos Manga Rosa e Viajando Sem Passaporte são mais conceitualistas. Em ambos os casos, são formados por artistas de formação acadêmica interessados em se expressar esteticamente no espaço público, mas de maneira mais minimalista. Na intervenção Trajetória do Terno (1979), integrantes do Viajando Sem Passaporte entram, um por vez, em um ônibus de São Paulo. O primeiro carrega um terno, que seria passado para o segundo, e assim por diante, após dizer a frase “Por favor, você poderia segurar esse terno por alguns minutos?” e descer do ônibus. O último integrante do coletivo entrega o terno a um deconhecido. No bolso interno há um cartão com a inscrição “Trajetória do Terno, Viajando Sem Passaporte, 1979, intervenção urbana, por favor devolva o terno no endereço tal”. O terno nunca mais foi visto. Já no caso do Manga Rosa, a principal ação é a intervenção em outdoors, circuito de cera forma inaugurado por Artur Barrio anos antes. As proposições estéticas do projeto Arte ao Ar Livre (1979–1982) têm uma característica digna de nota: muitas vezes o grupo “abre” seus outdoors para artistas convidados, que poderiam usufruir do circuito para criar em conjunto utilizando-se da estética do outro. Isso, de certa forma, já é a manifestação de uma estrutura de plataforma, comum depois da virada do século, já em contexto digital.

Nos anos 1990 em diante, os coletivos artísticos reivindicando a rua se proliferam em São Paulo. Valendo-se do contexto brasileiro em geral, o historiador André Mesquita (2008) atribui a “emergência de um novo coletivismo artístico na década de 90” ao surgimento das novas tecnologias de comunicação e à necessidade de reafirmar o valor político da cultura diante do cenário neoliberal durante as administrações Collor (1990–1993) e FHC (1995–2001). Ambos os ex-presidentes eliminam o apoio governamental às artes e deslocam a política cultural para a iniciativa privada.

É deste período o projeto Arte/Cidade (1994), que contou com o financiamento do Sesc SP para a ressignificação do ambiente urbano através principalmente de instalações. Esta década vê a profusão da cultura urbana, principalmente da periferia, com os movimentos do rap e do hip-hop, que dá início à estética do culture jamming: remix, colagens, stickers, grafite, lambe-lambes e intervenções fugazes no espaço da cidade. Muitos coletivos têm no ativismo a principal atividade, mas não deixam de usar o corpo e os espaços das ruas como laboratório para suas ações (Mesquita, 2008:236). É o caso do Centro de Mídia Independente (CMI), dos movimentos punk e dos grupos antiglobalização que se reúnem em protestos contra a Alca, o FMI, o Banco Mundial e tomam a rua de assalto com pequenas multidões. A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, por exemplo, teve sua primeira edição em 1996, e muito de sua concepção pode ser categorizada como ativismo artístico. Outros grupos diretamente inspirados nas práticas performativas recentes do Viajou Sem Passaporte são os grupos Alerta!, Bete Vai à Guerra, Cia. Cachorra e Núcleo Performático Subterrânea. É também na cidade de São Paulo o lugar em que as articulações dos grupos de teatro cresce de tal maneira em torno da Cooperativa Paulista de Teatro a ponto de pressionar as administrações municipais para, em 2002, obter a vitória por uma Lei de Fomento ao Teatro. Isso influencia o movimento de coletivos de arte como um todo.

No início dos anos 2000, com a atuação em rede possibilitada pela Internet e a chegada da nova visão de mundo originada pela cibercultura, o coletivismo artístico paulistano chega à maturidade, com a atuação de A Revolução Não Será Televisionada, BijaRi, Catadores de Histórias, Esqueleto Coletivo, Formigueiro, Coletivo Elefante, C.O.B.A.I.A., Horizonte Nômade, Nova Pasta, Frente 3 de Fevereiro, Contra Filé, O Povo em Pé e uma infinidade de outros grupos. As linguagens também se diversificam: projetos de intervenção urbana, performance, vídeo, pensamentos sobre o circuito de arte e a arquitetura inserida no contexto sócio-político da cidade. Um evento em especial é catalisador dessa atividade tão fragmentada: o encontro Arte Contemporânea no Movimento Sem-Teto do Centro (ACMSTC), ocorrido em dezembro de 2003 na Ocupação Prestes Maia, com mais de 120 artistas participantes. O envolvimento dos coletivos com a luta por moradia é um dos pontos centrais dos projetos de arte produzidos ali, impossível de dissociar do ativismo. “Precisamente, o que parece caracterizá-los não é uma construção identitária, mas um investimento num associativismo que se dá em um regime de impermanência, de contrato flexível.” (Gonçalves, 2012:181)

Outro exemplo célebre das ações criadas nesse período é o Monumento à Catraca Invisível (2004), assinado pelo Contra Filé. A intervenção é realizada no Largo do Arouche, sobre o pedestal do busto do escritor Guilherme de Almeida (que havia sido retirado e que permanece vazio até os dias de hoje). Durante a madrugada, integrantes do grupo instalaram anonimamente uma catraca adquirida num ferro-velho da Zona Leste seguida do nome da obra, uma provocação ao Departamento de Patrimônio Histórico e à Academia Paulista de Letras, situados do outro lado da rua. No dia seguinte, o jornal Folha de S. Paulo faz uma reportagem sobre “uma catraca invisível” que apareceu da noite para o dia, e a partir daí segue-se uma disputa narrativa em torno dos temas da arte e do ativismo: de quem é o espaço público? O Contra Filé assume o ato e acaba por desenvolver na catraca um símbolo de resistência que perdura por mais de uma década. Em 2005, por exemplo, o tema da redação da Fuvest é “a descatracalização da vida”. A cartunista Laerte cria o personagem Homem Catraca. Quase 10 anos depois, o Movimento Passe Livre (MPL) lidera as Jornadas de Junho de 2013 queimando catracas em seus protestos. Um dos empreendimentos de comunicação brasileiros de mais repercussão e controvérsia no século 21 é o site Catraca Livre, criado pelo jornalista Gilberto Dimenstein.

O grupo BijaRi também tem ações emblemáticas, mais ligadas aos temas da ecologia e da requalificação do espaço urbano, já que seus integrantes são todos oriundos do campo da arquitetura. A série Natureza Urbana (2007-) comporta diversas intervenções, sempre respondendo a urgências e assuntos que estão no imaginário da cidade no momento em que são realizadas. O Outdoor Verde (2007), por exemplo, é uma reação à Lei Cidade Limpa, que regulamentou e limitou a exibição de anúncios em fachadas, vitrines e espaços urbanos em geral; os artistas criam um outdoor feito inteiro com grama, sem textos. O mesmo ocorre com o Carro Verde (2011), uma intervenção sobre carros abandonados no espaço público. O grupo enche de terra e planta mudas de plantas ornamentais e flores, transformando a sucata e o lixo da rua em um jardim improvável. A matéria dos projetos de arte do BijaRi, assim como o dos outros exemplos de que me valho aqui, são os bens comuns da metrópole.

O trabalho de mestrado de André Mesquita organiza boa parte da pesquisa histórica sobre este período. Em Insurgências Poéticas (2008), ele se debruça sobre diversos dos temas que interessam a quem procura se aprofundar no assunto — ali, lista diversas das ações realizadas no período, Jogo das Possibilidades (2003), Zona de Poesia Árida (2006), Zumbi Somos Nós (2006), Monumento Horizontal (2004), Homens Ignorando (2005), Território São Paulo (2006). Para ele, o coletivismo artístico é ao mesmo tempo “paradoxal e dinâmico”, porque, ao mesmo tempo em que nega a ideia do artista gênio da espécie, pode conduzir à fetichização do ativismo, que seria tão estéril quanto a arte dentro do sistema tradicional das artes.

A difusão da cultura digital até o fim da década de 2000 e a inserção generalizada das redes sociais e dos dispositivos móveis na vida urbana amplifica ainda mais o surgimento de coletivos. Redes de ativistas e artistas passam a operar em torno das tecnologias livres e do ativismo da própria cultura digital, incorporando a luta por protocolos abertos do software livre e a construção coletiva a partir do common. Essa discussão inunda as indústrias da arte e da cultura neste momento. O Ministério da Cultura das gestões Gilberto Gil (2003–2009) e Juca Ferreira (2009–2010) cria e executa o programa Cultura Viva, incentivando novos coletivos e a formalização de grupos já atuantes na figura dos Pontos de Cultura. Neste contexto, o pesquisador Fernando do Nascimento Gonçalves (2012) coloca o seguinte:

[Essa nova geração de artistas brasileiros] percebe que num mundo cada vez mais interligado, espaços presenciais e virtuais se imbricam através de redes de comunicação que passam a ser um importante recurso para novas formas de expressão artística e política. Atuando de forma independente ou por vezes de forma conjunta, muitos coletivos se inserem em redes virtuais de comunicação, por meios das quais realizam debates, trocam experiências e organizam ações conjuntas. (GONÇALVES, 2012:183)

É no ano de 2009 que a Casa da Cultura Digital emerge. Até 2013, o lugar funciona no espaço que já foi uma vila de operários como uma congregação de iniciativas, pessoas, organizações e empresas autônomas que operaram na intersecção entre poder público, ativismo, artes, iniciativa privada e empreendedorismo. Dá lá saem projetos que impactam a forma como o ativismo e a produção artístico-ativista se organiza no Brasil contemporâneo: Ônibus Hacker, Produção Cultural no Brasil, os dois Fóruns e o Festival CulturaDigital.Br, Arte Fora do Museu, Garoa Hacker Clube, entre muitos outros. A Casa da Cultura Digital tem o primeiro canal curado na plataforma de crowdfunding Catarse, criada em 2011 — por ali seria financiado o BaixoCentro, um dos modelos de casos apresentados mais adiante.

De ações pontuais lideradas por coletivos, na virada para a década de 2010 as iniciativas incorporam os conceitos trazidos pelo digital: a busca por “novas formas de vida”, a “inteligência coletiva”, a “partilha do comum” e a “estética do encontro fortuito”. Assim, criam plataformas sobre as quais artistas e ativistas atuam. Este conceito é caro à Internet. Segundo o Free Computing Dictionary, plataforma “é a combinação de hardware e sistemas operacionais” desenvolvida para “dar suporte à atividade de determinados softwares”. É assim que muitos dos projetos de arte se organizam nos anos 10 na cidade de São Paulo, ao criar ambientes e estrutura (hardware) propícios à realização de determinado tipo de ações (softwares) — happenings, intervenções, shows, peças, exposições e o que mais couber. BaixoCentro, Piscina no Minhocão, Pimp My Carroça, Barulho.org, Voodoohop, Buraco da Minhoca, O.bra e tantas outras iniciativas são plataformas que reivindicam o espaço público no formato de zonas autônomas temporárias e operam sobre o que o filósofo Pablo Ortellado (2004) qualifica como “municipalidades autônomas, que existem dentro da sociedade capitalista, mas em oposição a ela” (2004:30). Sua vertente puramente estética também vem do digital, conforme André Lemos (2006:52): o “princípio que rege a cibercultura é a re-mixagem” — por re-mixagem entenda-se o remix, a colagem e a recombinação livre de conteúdos e formas.

Além da ideia de plataforma, há ainda outra característica específica que une vários dos projetos de arte paulistanos envolvendo política na segunda década deste século — ou, na terminologia utilizada neste trabalho, que envolvem o “comum”. É o fato de contarem com financiamento coletivo via Internet (crowdfunding), uma ferramenta da cultura digital que ao mesmo tempo levanta dinheiro e ativa a rede ao redor de determinada ação. A novidade aqui é o lastro. É a multidão em rede que exerce o papel outras vezes desempenhado por curadores, gestores e outras figuras do mercado da arte. E também é a multidão o público primeiro das ações propostas pelos artistas ou coletivos de artistas.

Modelos de casos

Sou o idealizador do BaixoCentro, uma rede aberta de produtores culturais interessados em ressignificar uma região específica de São Paulo, que não existe formalmente no mapa, e dá nome ao grupo. O “baixo” centro da cidade (entornos do Elevado Costa e Silva, o Minhocão) recebeu um festival autogerido e horizontal entre março e abril de 2012, a partir do aporte de R$ 17.103 realizado por 269 pessoas. Para o festival acontecer, foi construída uma plataforma online para cadastro de ideias (foram 110 itens na programação) e desenvolvida a Trike Multimídia, que garantiu a tecnologia para as ações, todas itinerantes por definição. Uma vez que o triciclo estivesse ali, estava colocada a zona autônoma temporária que fazia o território ser o BaixoCentro.

O convite ao público sempre foi bem claro: venha assistir à programação e desrespeitá-la ao mesmo tempo, venha intervir porque a rua não precisa de licença. Os membros da rede trabalharam num conceito disruptivo de “cuidadoria”, em vez de curadoria, uma maneira poética de dizer que nenhum projeto inscrito seria rechaçado ou selecionado, mas sim “cuidado” para que ocorresse conforme o desejo do proponente. O BaixoCentro levou milhares de pessoas para aquela região da cidade num momento em que ocupar as ruas não era prática corrente, como se viu nos anos seguintes, fenômeno que essa iniciativa possibilitou que ocorresse. A repercussão foi imensa e inspirou coletivos de várias cidades do Brasil a replicar o modelo aberto — mais um sinal de que há commons em jogo: a pólis, a poluição, o trânsito, o lazer, a natureza, a própria arte.

Com objetivo manifesto “tirar os catadores da invisibilidade através da arte”, o artista Thiago Mundano organizou intervenções em 50 carroças de catadores de papelão em um evento no Vale do Anhangabaú em maio de 2012. A multidão financiadora, assim como o público em geral, foi convidado para comparecer à ação Pimp My Carroça, para fazer parte da criação coletiva. Após conseguir R$ 63.950 investidos por 781 pessoas, ele formou e ativou uma comunidade de interessados nessa iniciativa para depois “abrir” sua proposta artística.

A ação foi abrasileirada e inspirada no programa da rede MTV Pimp My Ride, que se dedicava a incrementar carros esportivos. Thiago Mundano desloca a ideia para o contexto social em que já atuava (é grafiteiro e artista urbano com obras ligadas a questões ambientais) e desloca também as carroças da posição de objeto-resultado para o papel de dispositivo relacional — serve como conexão entre quem está ali criando e fruindo a obra e a cidade. O sucesso do mecanismo foi tão grande que outras oito edições já foram realizadas em cidades pelo Brasil. Como dito, vários commons estão em jogo: o lixo, o trabalho, o espaço público, a dignidade humana.

Já a arquiteta e artista visual Luana Geiger construiu uma piscina de 50 metros sobre o Elevado Costa e Silva, viabilizado via crowdfunding com o apoio institucional da X Bienal de Arquitetura. Luana iniciou suas atividades junto ao coletivo BaixoCentro e partiu do grupo para essa iniciativa individual (mas coletiva, uma vez que só faz sentido com a apropriação e interação do público). Para construir a Piscina no Minhocão em 23 de março de 2014, que levou mais de 105 mil litros de água, a artista contou com R$ 8.257 advindos de 176 pessoas.

Foi de uma provocação imensa transformar em área de lazer aquático parte dos 3,5 quilômetros de concreto armado erguidos no começo dos anos 1970 exclusivamente para carros. Esta é talvez a obra mais claramente relacional entre as selecionadas para estudo, já que a piscina em si não é nada sem gente dentro, além do fato de a iniciativa ter abertamente como inspiração as cosmococas de Hélio Oiticica, construções interventivas de arte contemporânea que já flertavam com o conceito de o artístico não estar na obra, mas nas relações em jogo. Como nos outros casos, os commons da natureza, do lazer, da poluição, da saúde, da diversão são evidentes na iniciativa de Luana Geiger. O projeto teve imensa repercussão midiática e foi fundamental na luta do direito à cidade paulistano, que em 2014 chegou a conquistar a aprovação do projeto de lei que prevê a desativação do Minhocão.

Elementos para uma poética do comum

A análise dos modelos de casos mostra que há diversos pontos em comum entre os três projetos artísticos — e também entre muitas outras manifestações do “common” em trabalhos de arte realizados em São Paulo no mesmo período. Para fins de estudo, recortei essas três ações, buscando o contexto em que estão inseridas, pois previa ser possível, a partir delas, organizar alguns dos tópicos que nos permite inferir caminhos poéticos trilhados por esses artistas.

Os cinco tópicos organizados abaixo são a primeira tentativa de identificar caminhos poéticos na contemporaneidade que têm no “common” seu principal campo de pertencimento. Como contribuição ao pensamento crítico das artes, portanto, proponho o conceito poéticas do comum: 1) apostar numa criação coletiva; 2) atuar no espaço público; 3) executar de maneira permeável; 4) escolher uma temática comum; 5) construir uma comunidade em torno.

Pelo menos foi esta a rota trilhada intuitivamente, no contexto de São Paulo, pelas iniciativas selecionadas como objeto de estudo deste trabalho. Como se vê, as poéticas do “commons”, que agora recebem elaboração teórica, têm seus preceitos muito próximos aos que fundam a cultura livre¹. Abaixo, explico os cinco aspectos identificados em BaixoCentro, Pimp My Carroça e Piscina no Minhocão, que servem de norte para outras obras/ações/iniciativas em diálogo com esse tipo de narrativa poética:

Concepção/autoria coletiva — A pesquisadora Júlia Blumenschein (2008) aponta três tipos de modelos de autoria para análises de processos criativos em arte: restrita, compartilhada e coletiva (2008:30). No primeiro, um artista assume a obra e busca profissionais e especialistas que possam auxiliá-lo. No segundo, um artista convida pessoas para dialogar e desenvolver um projeto, que influenciarão no resultado final a partir de suas contribuições, e, portanto, será uma criação compartilhada. No terceiro, o mais complexo, o processo criativo é feito em grupo desde a concepção inicial, numa negociação tal que a obra final não será de nenhum dos integrantes, mas do coletivo.

Já que atuam como plataforma, abrindo espaço para a manifestação de outros artistas durante a realização da obra, os três projetos analisados aqui acolhem os três modelos de autoria de Blumenschein, embora tenham, na sua concepção primeira (no insight do projeto em si), a complexidade da criação coletiva. Mesmo no caso do Pimp My Carroça, bastante construído em torno da figura de Thiago Mundano, a ação não se completaria se o processo não fosse concebido coletivamente. No BaixoCentro isso fica mais claro: cada etapa da idealização parte de consensos cada vez mais difíceis, visto que a rede se amplia e, assim, estendem-se os debates. Fica clara, portanto, a opção desses projetos de, uma vez atuando com bens comuns partilhados, partir para uma autoria verdadeiramente coletiva.

Manifestação no espaço público — Esta é uma ideia bastante clara, não havendo muito mais o que explicar, já que nos territórios da cidade confluem as disputas e subjetividades dos habitantes e frequentadores de cada espaço. O que, sim, deve-se sublinhar é a natureza híbrida dos projetos, posicionados concomitantemente em universos da arte pública e da artemídia. A organização, concepção e execução se dá também nos territórios informacionais de São Paulo, não apenas por estarem mediadas pelas tecnologias de comunicação, mas por ativar o imaginário e disputar a atenção simbólica de avatares em redes sociais. Sem a carga viral que as iniciativas contêm em si mesmas seria inviável a realização. O espaço público, aqui, é considerado em sua ambivalência cíbrida: online e off-line ao mesmo tempo.

Execução aberta/permeável/relacional — Não encontro síntese melhor para este tópico do que uma frase do vídeo de captação do BaixoCentro: “Nós queremos criar uma infra-estrutura para este projeto para que ele mesmo seja aberto à intervenção e à desobediência de quem quiser. Nós queremos desobedecer a nossa própria produção”². Vemos aqui uma aplicação inédita da lógica das comunidades de software livre, típica das organizações em rede, à produção em artes. As iniciativas descritas neste trabalho têm os seus códigos abertos, estão permanentemente descortinadas e contando com a fissura, com o fork, com mudanças no rumo baseadas nos inputs dados por membros da rede aberta. Dependendo do nível de abertura, essa característica também é chamada de permeável ou relacional, uma vez que o resultado final nunca está previsto totalmente de saída. Parece nítido que há problemas éticos em projetos fechados, privados ou totalmente concebidos que buscam ativar ou se valer do bem comum. O commons exige permeabilidade.

Temática comum — Retomo em termos gerais duas definições de bens comuns para ilustrar o que os trabalhos analisados têm como principal temática. Lewis Hyde (2010) diz que “bens comuns são um regime social para gestão de recursos partilhados coletivamente”, enquanto Michael Hardt e Antonio Negri (2004), em acepção diferente, descrevem o bem comum como o fruto da produção coletiva da multitude organizada em enxame, como resistência política à narrativa totalizante e belicosa da sociedade contemporânea. Como vimos, embora levantem vários conceitos e deem espaço para a geração de significados e apropriações muito diversas, as temáticas principais da Piscina no Minhocão são o lazer e a preguiça, do Pimp My Carroça o lixo e a figura dos catadores, e no BaixoCentro o direito à cidade. É óbvio concluir que as iniciativas que buscam atuar segundo uma poética do comum têm, em sua gênese, o comum como motivação principal.

Comunidade em torno — Nos três projetos manifesta-se o fenômeno da transfiguração da multidão online em multitude que o financiamento coletivo é capaz de promover (enquanto ferramenta a serviço da cultura livre). Em termos gerais, o que define as multidões online são o interesse comum por algum tópico e o posterior desenvolvimento de vínculo afetivo em torno de determinado conteúdo (um blog, por exemplo) (Stage, 2013). Há consumo/troca de informação e uma relação de plateia. A multitude, ao contrário, age em conjunto, cria, partilha e zela pelo common. Os três projetos de arte são lastreados pelo processo de captação de recursos por crowdfunding; é o dinheiro coletado via Internet o que os justifica, sustenta e permite que atuem no “comum”. Isso é tão evidente que muitos projetos de interesse público vinculado a marcas ou governos tendem a sofrer resistência, ao menos parcialmente. O que mantém a independência, no caso do BaixoCentro, do Pimp My Carroça e da Piscina no Minhocão, é o financiamento coletivo teoricamente desinteressado, ou, para ser mais específico, interessado apenas na realização da ação, sem outras intenções. A comunidade que financia não apenas viabiliza o projeto pragmaticamente, mas, ao mesmo tempo, contribui para sua existência ontológica.

Estes elementos servem como ponto de partida para outras reflexões e obras artísticas sobre o tema, assim como colaboram com outras áreas do conhecimento que se interessem pela estética no sentido da construção das cidades. Ao mesmo tempo, expandir esses conceitos é reconhecer que preceitos artísticos não são estanques e que novas recombinações e ordenamentos são próprias da configuração da multitude. Mais do que se limitar, organizar para expandir. Hoje, mais que ontem, buscar o comum é um ato de resistência diante da individualização e espetacularização do mundo. O artista que se vale de poéticas do comum deve criar novas ficções, fricções, para disputar o imaginário coletivo da cidade. O comum está no como-fazer.

Referências

ARANTES, Priscila. @rte e mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Ed Senac, 2005. 190 p.

BAMBOZZI, Lucas; BASTOS, Marcus; MINELLI, Rodrigo (orgs.). Mediações, tecnologia e espaço público: panorama crítico da arte em mídias móveis. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010. 223 p.

BLUMENSCHEIN, Júlia Camille. Processos criativos no SCIArts — Equipe Interdisciplinar. Orientação: Lucia Isaltina Clemente Leão. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado — Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital) — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009. 151 p.

GONÇALVES, Fernando do Nascimento. Arte, ativismo e tecnologias de comunicação nas práticas políticas contemporâneas. In: Contemporânea, v 10, n. 2, p. 178–193, 2012. Disponível em: <http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_20/contemporanea_n20_12_GONCALVES.pdf>. Acesso em: 7 fev. 2016.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude: war and democracy in the age of Empire. Cambridge: Polity Press, 2004.

HYDE, Lewis. Common as Air: revolution, art and ownership. Nova York: FSG, 2010.

LEMOS, André. Cibercultura como território recombinante. In: MARTINS, Camila Duprat; CASTRO E SILVA, Daniela; MOTTA, Renata (orgs.), Territórios recombinantes: arte e tecnologia — debates e laboratórios. São Paulo: Instituto Sérgio Motta, 2007, p. 35–48.

LESSIG, L. Free culture: how big media uses technology and the law to lock down culture and control creativity. 2004. Disponível em: <http://free-culture.cc/>. Acesso em: 25 set. 2014.

MESQUISTA, André. Insurgências Poéticas: arte ativista e ação coletiva (1990–2000). Dissertação (Mestrado em História Social — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas — USP), 2008.

MIRANDA, Danilo Santos de (coord.). Arte Pública: trabalhos apresentados nos Seminários de arte pública realizados pelo SESC e pelo USIS, de 17 a 19 de outubro de 1995 e de 19 a 21 de novembro de 1996, este último com a participação da União Cultural Brasil-Estados Unidos. São Paulo: SESC, 1998. 321 p.

ORTELLADO, Pablo; RYOKI, André. Estamos vencendo! Resistência global no Brasil. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. (Coleção Baderna)

STAGE, Carsten. The online crowd: a contradiction in terms? On the potentials of Gustave Le Bon’s crowd psychology in an analysis of affective blogging. Distinktion: Scandinavian Journal of Society Theory, 14:2, 211–226. Aarhus, Dinamarca: Aarhus University, 2013.

[1] Nome dado ao movimento da “cultura da permissão”, que prega a liberdade de modificar e gerar novas obras a partir daquelas distribuídas livremente. Lessig (2004) foi quem relacionou o termo ao universo criativo da internet.

[2] Disponível em: <https://www.catarse.me/baixocentro>. Acesso em: 18 jun. 2017.

Publicado originalmente em Anais ANPAP, em 29 set. 2017.

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Lucas Pretti
Lucas Pretti

Written by Lucas Pretti

Brazilian journalist, artist and researcher working in the intersections of digital culture, activism and contemporary arts. http://pretti-et.al

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