Arte pública e multitude na cidade de São Paulo: o financiamento coletivo como ativador do common
RESUMO: Este artigo introduz o conceito de multitude, criado por Michael Hardt e Antonio Negri, na discussão sobre a produção de obras de arte pública. As obras selecionadas como objeto de estudo têm em comum o fato de terem sido possíveis graças às plataformas de crowdfunding (financiamento coletivo), cujos projetos, dependendo de fatores como impacto e estética, podem transfigurar a multidão online em multitude. Partimos da tentativa de correlacionar as noções de multitude e “inteligência de enxame” de Hardt/Negri à estética relacional de Nicolas Bourriaud, para, então, investigar algumas características de iniciativas de artistas e grupos artísticos em São Paulo na década de 2010, particularmente Pimp My Carroça (Mundano) e BaixoCentro (do autor).
A estética da multitude
Os filósofos Michael Hardt e Antonio Negri (2004) elegem a palavra common, no singular, para se referir a uma nova característica da sociedade contemporânea, em oposição à ideia feudal relacionada a commons, no plural. Se, antes, na Inglaterra do século 13, os bens comuns eram áreas de partilha e zelo coletivo, que precederam a ideia de propriedade privada, no pós-revolução digital essa característica é apenas uma referência à utopia de coletividade. Para Hardt e Negri, o common é a produção biopolítica (comunicação, ação conjunta, convivência, etc.) que faz emergir uma nova figura sociológica: a multitude.
Algumas vezes traduzida nas edições em português como “multidão”, este conceito é a novidade contemporânea que atualizaria para a sociedade da informação as ideias de “o povo”, “a massa” e “a classe trabalhadora”. Mais do que apenas um agrupamento censitário de pessoas, a multitude é um modo de vida alternativo, formado a partir da identificação da diversidade, da tolerância e da abertura ao novo. Hardt e Negri fazem questão de sublinhar a diferença de seu conceito em relação a outras figuras sociais. O conceito de “povo” está baseado na identidade nacional ou étnica; “o povo” é um, enquanto a multitude são vários. Já a ideia de “massa” tende ao cinza, à uniformização, enquanto a multitude é multicolorida — mesmo agindo em conjunto, a organização interna é heterogênea. Por último, a noção de “classe trabalhadora” normalmente se define por papel social e por faixa de renda, enquanto isso não importa para a multitude. A imagem de mais fácil compreensão é a estrutura física da própria internet. Não por acaso é no pós-revolução digital que a multitude tem o contexto favorável para emergir.
A distributed network such as the Internet is a good initial image or model for the multitude because, first, the various nodes remain diferent but are all connected in the Web, and, second, the external boundaries of the network are open such that new nodes and new relationships can always be added. (Hardt e Negri, 2004)
Também coincide com a revolução digital, nos anos 90, a cena de ações artísticas que o teórico francês Nicolas Bourriaud na década seguinte organizaria sob a alcunha relacional: “Uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado”. A concepção de Bourriaud coloca o artista como mediador de ambientes e criador de dispositivos que detonam a possibilidade de interação entre os “espectadores” da obra (que perdem também a função de apenas espectadores ou apenas interatores e passam a ser a obra de arte em si).
Os contratos estéticos, tal como os contratos sociais, são tomados pelo que são: ninguém mais pretende instaurar a idade de ouro na terra, e ficaremos contentes em criar modi vivendi que permitam relações sociais mais justas, modos de vida mais densos, combinações de existência múltiplas e fecundas. Da mesma forma, a arte não tenta mais imaginar utopias, e sim construir espaços concretos. (Bourriaud, 2009)
Três artistas esboçam melhor o tipo de realização de que estamos falando. Em Crazy Tourist (1991), o mexicano Gabriel Orozco colocou uma laranja em cima de cada banca de um mercado brasileiro vazio e, em 1993, instalou uma rede no jardim do Museu de Arte Moderna de Nova York (Hamoc en el MoMA). Em Turkish Jokes (1994), o dinamarquês Jens Haaning instalou e transmitiu histórias engraçadas faladas em turco em alto-falantes numa praça, que apenas os imigrantes turcos de Copenhague conseguiam entender. A inglesa Angela Buloch montou um café em 1993 em que a lotação acionava um trecho de música da banda Kraftwerk. Isso tudo é arte? Escultura? Instalação? Performance? Ativismo social? Todas as iniciativas rompem com o objeto de arte tradicional, contemplativo, gerado pelo gênio do espírito, em nome de detonar situações, em diversas escalas, mas que de alguma forma buscam fissurar a realidade que se está vivendo. “A forma da obra contemporânea vai além de sua forma material: ela é um elemento de ligação, um princípio de aglutinação dinâmica. Uma obra de arte é um ponto sobre uma linha” (Bourriaud, 2009:29).
Ora, como não entender a semelhança entre as “formas de vida ricas e livres” de Negri com os “modi vivendi” de Bourriaud? A arte é indissociável do cotidiano e o artista faz de sua produção uma maneira de interferir neste dia-a-dia. O common e a multitude inauguram, portanto, um novo estado da arte na sociedade contemporânea pós-revolução digital. Os projetos artísticos que emergem nesse contexto também buscam a horizontalidade, a democracia, a tolerância e “novas formas de vida”. É possível aqui avançar neste pensamento a partir da correlação com Hardt e Negri e afirmar que os dispositivos relacionais operam a partir do common, ou são eles mesmos manifestações do bem comunal partilhado.
Arte pública comunal coletiva
As plataformas de financiamento coletivo (crowdfunding) são para o universo da cultura e da arte a materialização da visão de mundo digital como forma e ética de produção em rede. Nas ciências sociais e na psicologia, o termo crowd é usado em três sentidos (Stage, 2013): a multidão de corpos em um mesmo espaço físico, a multidão “mediada” (que usa ferramentas digitais mas preponderantemente atua num espaço real) e a multidão online, afetadas pela “unificação afetiva” e “sincronização relativa”, responsáveis por converter pessoas comuns conectadas a um determinado conteúdo na internet de simples audiência a uma multidão. Os proponentes de projetos de crowdfunding normalmente esperam ativar esta última: a multidão online se parece com os mecenas contemporâneos, que se unem em torno de uma causa (ou um projeto cultural e artístico) para financiá-lo, respeitando seus mecanismos pessoais de identidade.
O que nos interessa nesta argumentação, porém, é dar mais um passo em termos de profundidade. Quando se junta a estrutura técnica das plataformas de crowdfunding, operando com as subjetividades da multidão espalhada pelo mundo, à utopia de criar em conjunto o que nunca poderia ser criado, está-se falando em common. A partir daí, é possível fazer uma afirmação poderosa: dependendo da natureza dos projetos de crowdfunding (suas características, impacto e estética), a multidão online se transfigura em multitude. É o que acreditamos ocorrer com as obras de arte pública escolhidas como objeto de estudo deste trabalho.
A cidade de São Paulo é a mais populosa e mais constrastada cidade da América Latina e, naturalmente, o principal palco de arte pública do país. Para além dos monumentos escultóricos construídos durante os séculos 19 e 20 em espaços públicos, que contam a história da cidade e proporcionam experiência de fruição visual aos passantes, vimos desde os anos 1970, seguindo a tendências das vanguardas artísticas, as ruas da cidade serem ocupadas por happenings e performances de artistas como Artur Barrio, Nelson Lernier, Cláudio Tozzi, Maria Bonomi e grupos como Viajou sem Passaporte, Manga Rosa e 3Nós3. Após a virada do século, multiplicaram-se as iniciativas de caráter interventivo. Nos anos 2000, coletivos de arte assumiram o protagonismo com ações ativistas e conceituais de coletivos como Contra Filé, BijaRi, Frente 3 de Fevereiro, EIA, A Revolução Não Será Televisionada, Ocupacidade, C.o.b.a.i.a, entre outros, que cavaram brechas na metrópole com dispositivos relacionais poéticos e políticos: uma kombi de papelão dirigida por quem quiser entrar, plantas levadas para passear em carrinhos de feira, um coral de Natal que entoa uma letra satírica, etc.
A difusão da cultura digital até o fim da década de 2000 e a inserção generalizada das redes sociais e dos dispositivos móveis na vida urbana amplificaria ainda mais o surgimento de coletivos. Redes de ativistas e artistas passaram a operar em torno das tecnologias livres e do ativismo da própria cultura digital, incorporando a luta por protocolos abertos do software livre e a construção coletiva a partir do common, cuja discussão passa a inundar as indústrias da arte e da cultura. Na década de 2010 vemos uma evolução dessas ações no sentido do abandono da obra de arte em si para buscar o formato plataforma; mais que um dispositivo relacional, abrem-se zonas autônomas temporárias em que outros artistas ou qualquer pessoa são convidados a intervir.
De ações pontuais lideradas por coletivos, na virada da década as iniciativas incorporam a busca por “novas formas de vida”, a “inteligência coletiva”, a “partilha do comum” e a “estética do encontro fortuito” (em suma, tudo o que o digital trouxe para a vida em sociedade) para criar plataformas sobre as quais artistas e ativistas atuariam. Este conceito é caro ao mundo pós-internet. Segundo o Free Computing Dictionary, plataforma “é a combinação de hardware e sistemas operacionais” desenvolvida para “dar suporte à atividade de determinados softwares”. É assim que os projetos de arte pública se organizam nos anos 10 na cidade de São Paulo, ao criar ambientes e estrutura propícios à realização de determinado tipo de ações — happenings, intervenções, shows, peças, exposições e o que mais couber. BaixoCentro, Piscina no Minhocão, Pimp My Carroça, Barulho.org, Voodoohop, Buraco da Minhoca, O.bra e tantas outras iniciativas são plataformas que reivindicam o espaço público no formato de zonas autônomas temporárias e operam sobre o que o pesquisador Pablo Ortellado (2004) qualifica como “municipalidades autônomas, que existem dentro da sociedade capitalista, mas em oposição a ela”. Sua vertente puramente estética também vem do digital, conforme André Lemos (2006): o “princípio que rege a cibercultura é a re-mixagem” — por re-mixagem entenda-se o remix, a colagem e a recombinação livre de conteúdos e formas.
Muitas dessas iniciativas têm em comum o fato de se darem no espaço público (físico e virtual) da cidade de São Paulo, de explorarem temas da coletividade humana (common) e de terem sido viabilizadas com recursos de financiamento coletivo (crowdfunding) — que claramente não seriam viabilizadas de outra maneira. Essa cena artística contemporânea tão virtuosa ainda não recebeu a dedicação suficiente da academia, e por isso nos oferecemos a esta tarefa, ainda work in progress: aprofundar o entendimento sobre arte contemporânea realizada nos espaços das cidades, tal qual no ciberespaço, e entender que tipo de influência estética a arte pública recebe da multitude e do digital.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude: war and democracy in the age of Empire. Cambridge: Polity Press, 2004.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009. 151 p.
STAGE, Carsten. The online crowd: a contradiction in terms? On the potentials of Gustave Le Bon’s crowd psychology in an analysis of affective blogging. Distinktion: Scandinavian Journal of Society Theory, 14:2, 211–226. Aarhus, Dinamarca: Aarhus University, 2013.
ORTELLADO, Pablo; RYOKI, André. Estamos vencendo! Resistência global no Brasil. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. (Coleção Baderna)
LEMOS, André. “Ciber-Cultura-Remix”. In: ARAÚJO, Denize Correa (org.). Imagem (ir) realidade: comunicação e cibermídia. Porto Alegre: Sulina, 2006.